Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
20 de Abril de 2024
    Adicione tópicos

    Desembargadora Katia Elenise Oliveira da Silva: "O Direito Penal não promove condutas e muito menos serve como lição. Pode apenas contribuir depois que o fato já aconteceu"

    A Desembargadora Katia Elenise Oliveira da Silva do TJRS sempre preservou a própria individualidade e muito jovem buscou ser independente. Em Santa Maria, sua terra natal, graduou-se em Direito e Matemática, matéria que chegou a lecionar. Também foi bancária. Recentemente promovida ao Tribunal de Justiça e atuando na 14ª Câmara Cível, fala sobre experiências de vida e do conhecimento acumulado em 23 anos de magistratura.

    Com a sabedoria de quem jurisdicionou por 15 anos na área criminal, a magistrada afirma que o Direito Penal somente atua na conseqüência da violência. Não a previne como é a expectativa da sociedade. Esclarece que a legislação, ferramenta do Juiz, não se presta para resposta ao anseio popular.

    Lamenta que as expectativas de redução criminal estejam focadas na mudança da lei penal e aumento de penas. Segundo a magistrada, "a violência, na sociedade, vai poder ser controlada ou não a partir de outras áreas que servem para promover condutas, quais sejam, a educação, a própria família".

    Preocupada com a violência em Porto Alegre, conta que sua família mantém residência em cidade do Interior, próxima da Capital. Essa opção é para que os filhos possam se desenvolver com mais qualidade de vida. Assim, relata, as crianças podem transitar com segurança, andar de bicicleta, freqüentar praças com amigos e vivenciar brincadeiras infantis saudáveis.

    Acompanhe a seguir a íntegra da entrevista da Desembargadora Katia Elenise Oliveira da Silva, que também se assume contrária à redução da maioridade penal, além de abordar outras temáticas.

    Desembargadora Katia Elenise Oliveira da Silva

    Desembargadora, antes do ingresso na Magistratura, a senhora foi bancária e inclusive é graduada em Matemática e Física. Conte-nos sobre essas experiências.

    Ingressei muito nova no Ensino Fundamental e, aos 15 anos, terminei o Magistério, porque tinha a intenção de ser professora. Aí eu fiz vestibular, em Santa Maria, tanto para Direito, como para Matemática, com braço na Física. E isso era possível porque os horários permitiam.

    A opção pela Matemática, na época, foi porque eu pretendia seguir estudando Estatística e, pelo Direito, porque eu sempre gostei das várias possibilidades que este curso apresenta.

    Ingressei, então, em ambas as faculdades e concluí as duas. Na verdade sempre gostei de lecionar e aos 17 anos, passei a dar aulas particulares em casa e depois

    em colégios. Era uma área também que eu pensava em seguir.

    Terminada a faculdade, porque eu iniciei cedo, também não tinha idade para fazer os concursos para a magistratura. Como sempre tive a ansiedade de ter a minha condição econômica estável e não depender dos meus pais, fiz um concurso que não tinha o requisito da idade e ingressei no Banco do Brasil.

    "Sou do Interior e viver em cidades pequenas

    para mim é o que mais se aproxima

    com o que eu penso ser uma vida inteira"

    Na magistratura, a senhora ingressou como Pretora e, em seguida, atuou como Juíza. Como foi jurisdicionar no Interior e ficar distante da família?

    Na época, fiz concurso para Pretora porque era o que permitia minha idade. Como saiu logo em seguida o concurso para Juiz de Direito, ingressei no cargo, pois aí já tinha o pré-requisito de ter sido Pretora e idade. Eu tive a sorte de passar nos dois, um logo em seguida do outro.

    A situação de viver longe da família não me era difícil, porque sempre tive a necessidade de ter a minha individualidade, inclusive econômica. Então, não foi uma situação muito difícil. Aliás, o mais difícil da minha carreira foi vir para Porto Alegre.

    Eu sou do Interior e viver em cidades pequenas para mim é o que mais se aproxima com o que eu penso ser uma vida inteira. No Interior há a possibilidade de ir para casa almoçar com a família, trabalhar de manhã, depois trabalhar à tarde e não retornar para o lar somente à noite. Com isto, é possível conviver com toda a família ainda no entardecer, tomar chimarrão, essas coisas que, em Porto Alegre, pelas distâncias, pelo trânsito, ficam difíceis. Então, eu tive que me adaptar ao vir para Porto Alegre.

    Já em Porto Alegre, quando a senhora jurisdicionou no plantão judicial houve algum caso mais marcante?

    O plantão judicial na época era bem diferente do que é hoje. Sempre havia, na madrugada, casos interessantes, às vezes, uma família inteira vinha acreditando que iria solucionar o seu problema familiar, porque no plantão havia um Juiz a disposição. A gente tinha, na época, condições de escutar aquelas pessoas e, mesmo não sendo caso de plantão, conseguir dar uma orientação. Hoje, acredito que não seja mais possível pelo número de reais circunstâncias que dizem respeito ao plantão que deságuam durante o anoitecer e toda a madrugada.

    "Especializei-me justamente para buscar

    soluções e caminhos

    para esta área

    que me parece a mais sofrida"

    A senhora tem especialização em Direito Penal, trabalhou em Varas Criminais, nas Turmas Recursais Criminais. Dentro do Direito, a área criminal é a sua preferência?

    Não. Eu acho que quem se diz apaixonado pela área criminal tem que procurar urgentemente um tratamento porque é muito sofrido trabalhar com o que tem de mais triste do convívio social. Especializei-me justamente para buscar soluções e caminhos para esta área que me parece a mais difícil para se trabalhar. E, como eu gosto de lecionar, busquei esta área também, porque acredito que a partir da academia possam ser feitas mudanças.

    Hoje, aqui no Tribunal, estou retornando à área cível, depois de muitos anos, pois trabalhei basicamente 15 anos só na área criminal. O Direito Civil é interessante, com bem menos sofrimento, pois atinge valores não tão fundamentais das pessoas, e onde se pode fazer um excelente trabalho também.

    Desembargadora Katia Elenise, foram 23 anos de magistratura até chegar ao Tribunal de Justiça. Como é conciliar carreira de tantas exigências com a vida familiar sendo esposa e mãe?

    Cada um tem a sua história, não vou dizer que para a mulher é mais difícil do que para o homem. Hoje em dia, também as esposas dos nossos Colegas trabalham e a dificuldade de acompanhá-los é idêntica a dos maridos acompanharem as Juízas, as Desembargadoras.

    Culturalmente parece mais fácil a mulher acompanhar o homem na sua carreira. Essa ainda era a nossa cultura, até há pouco tempo, e reverter culturas não é uma coisa tranqüila. Mas, dentro da minha história, tive sorte. Construí uma família e estou conseguindo conciliar com a carreira.

    Mas, certamente, não é uma situação tranqüila, pois nós temos excesso de trabalho, durante a carreira nos deslocamos muito e a família acaba sofrendo um pouco.

    "Lá eles conseguem andar de bicicleta pelas ruas,

    ir numa praça, ter amigos, vivenciar

    brincadeiras infantis, que aqui é impossível"

    É difícil a situação de não poder ver os filhos todos os dias?

    Não, não é difícil, eles moram em uma cidade próxima à Capital. E eu já residi

    em São Paulo, onde as pessoas fazem uma ou duas horas por dia de viagem normalmente. Fizemos uma proposta familiar, para que as crianças tenham mais vida. Enquanto ela estiver funcionando, nós faremos assim.

    Dores a gente sempre tem, sem dúvida nenhuma. Se eu vivesse com eles, aqui em Porto Alegre, eu teria também essa separação, porque saio de casa muito cedo, não vou almoçar em casa e volto, quase sempre, muito tarde. Então, eu também os veria muito pouco e, ao mesmo tempo, os impediria de terem mais vida. Lá, no interior, eles conseguem andar de bicicleta pelas ruas, ir numa praça, ter amigos, vivenciar brincadeiras infantis, que aqui é impossível. Sei disso porque já tive essa experiência com as crianças aqui, pois já moramos por um período todos aqui, e eles tinham quase que uma vida de executivo, bem antes do tempo de tê-la.

    "A maior dor que o magistrado sente é esta, ao perceber,

    especialmente em algumas áreas, que terminar o processo

    não significa terminar o litígio das pessoas"

    A senhora tem conseguido chegar a decisões que, de certa forma, sejam gratificantes, apesar de contentar uma parte e a outra não?

    Essa é a nossa carreira, e não podemos tomar nenhuma decisão para contentar alguém. Temos que, dentro do caso concreto, tentar realizar a melhor justiça possível. E nem sempre isso termina com o conflito entre as partes. A maior dor que o magistrado sente é esta, ao perceber, especialmente em algumas áreas, que terminar o processo não significa terminar o litígio das pessoas.

    E dores e frustrações em todas as carreiras há. O importante é tentar fazer o melhor e, a cada passo, a cada etapa, acreditar nesta possibilidade e nunca esmorecer.

    O que muda chegando ao Tribunal de Justiça em comparação com a atuação do magistrado em primeira instância?

    A mudança, realmente, é significativa. Até parece que são duas carreiras, porque lá no 1º Grau eu, como Juíza, especialmente da área criminal, tinha uma vivência direta, em audiência, com as pessoas. Havia um convívio com o jurisdicionado e com o povo, a partir da vítima, pois os familiares dela também procuram muito o Juiz criminal, assim como os familiares do réu. Então, a magistratura de primeiro grau fica entrelaçada com a comunidade, com a sociedade.

    E aqui não. Trabalha-se em gabinete, com a assessoria e acabamos tendo menos contato com as pessoas. No próprio prédio do Tribunal, eu senti diferença, pois trabalhava no Foro Central, onde há milhares de pessoas que transitam por dia. Aqui, até nos corredores, circula pouca gente.

    É outra vivência do Judiciário, é diferente.

    Quanto a trabalhar em grupo, estou tendo sorte com os companheiros. Os Desembargadores da Câmara estão dispostos a fazer reuniões, estamos nos conhecendo e discutindo como estamos decidindo. Eles foram muito gentis e acolhedores aceitando estas reuniões, a pedido meu. Eu queria não só conhecê-los como pessoas, o que para mim é importante, mas também conhecê-los enquanto magistrados, como estavam decidindo, a partir deles mesmos e não só lendo os seus acórdãos.

    A diferença, assim, é muito grande, e a adaptação precisa ser feita. Acredito que este período se estenda talvez até mais três ou quatro meses. Inclusive com a própria assessoria, há também este período de encontrar as pessoas, afinar-se, e a partir daí, realmente ter um ritmo de trabalho.

    "Não vai ser a partir de uma pena, mais ou menos elevada,

    que o Juiz criminal possa dar para o caso concreto, que vai haver

    a solução para as próximas violências que ocorrerão"

    Desembargadora, a senhora jurisdicionou a área criminal por muitos anos e sabe que a violência social é imensa. Quais seriam as alternativas para minimizá-la?

    Há uma expectativa muito grande no Direito Penal e de uma resposta de um Juiz na área criminal, e ela não é tão viável, pelo menos não como as pessoas esperam. Por quê? Porque o Direito Penal trabalha na conseqüência. Então, nós só podemos dar uma resposta: a sanção penal; e o Juiz penal só vai dar esta resposta depois que o fato já ocorreu, depois que a violência já aconteceu.

    Não vai ser a partir de uma pena, mais ou menos elevada, que o Juiz criminal possa dar para o caso concreto, que vai haver a solução para as próximas violências que ocorrerão. Isso é uma fantasia que se criou. O Direito Penal não promove condutas e muito menos serve como lição. Esta área do Direito pode apenas contribuir depois que o fato já aconteceu, com a aplicação da sanção que o Estado dá.

    Então, o que serve para mudar? Como se mudam condutas? No meu entender somente a partir de outras áreas. E aí vem o grande conflito que pode passar um Juiz de uma área criminal, pois a expectativa social é muito grande, e ele não vai dar uma resposta para toda essa expectativa, porque a ferramenta que ele tem na mão não é viável para isso.

    "Toda a minha experiência em inúmeros anos na área criminal

    me diz que nenhum assaltante, criminoso, revê a sua conduta

    porque a pena de determinado crime aumentou."

    A violência, na sociedade, vai poder ser controlada ou não a partir de outras áreas que servem para promover condutas, quais sejam, a educação, a própria família. Na atuação repressiva do Estado, o controle da violência deve ocorrer antes de o crime acontecer. Inúmeros estudos sobre isso existem. Por exemplo, se há uma área que se vê que é problemática, vamos supor, o centro de Porto Alegre à noite, como pode ser solucionado o problema da violência antes de haver o crime? Depois do fato ocorrido, nos cabe ver se é homicídio, quem matou, qual é a pena. Já houve o crime. Mas, antes de o homicídio ocorrer, como vamos fazer? Podemos transformar o centro de Porto Alegre a partir de um ostensivo policiamento para evitar que aconteça o crime; iluminação melhor, retirar as pessoas dali que buscam diversão, pois há muitos bares, etc. São áreas do Estado que podem funcionar antes da área da repressão, via Direito Penal, via jurisdição de um Juiz na sua Vara Criminal. Porque o Juiz na Vara Criminal só trabalha com a conseqüência. Já ocorreu o fato violento. E toda a minha experiência em inúmeros anos na área criminal me diz que nenhum assaltante, criminoso, revê a sua conduta porque a pena de determinado crime aumentou. Isso não existe, também é uma ilusão, é uma falsa realidade que se passa para as pessoas.

    Da mesma forma, nenhum Juiz hoje pode reprimir grandes violências de massa, qualquer que seja a pena que ele dê. Por exemplo, em estádios de futebol. É necessária fiscalização policial para que não ingressem nos estádios pessoas com ferramentas que possam causar uma violência maior ali dentro. E isso tem que ser feito bem antes da atuação do Direito Penal.

    Infelizmente, a expectativa está toda no Direito Penal, na mudança da lei penal, aumentando penas, tirando direitos das pessoas que respondem aos processos. Não que se pense só nessas pessoas, nos réus. Mas, é importante referir que quando as pessoas se transformam em réus, tem que se pensar no que está garantido constitucionalmente para elas, sob pena de aniquilarmos com o Estado de Direito.

    "E, se o Direito Penal já não faz, porque não é a sua função,

    com os maiores, não fará com os menores."

    O que a senhora pensa da redução da maioridade penal?

    A maioridade penal hoje é de 18 anos. E, há muito tempo eu não atuo na área da Infância e Juventude, onde eu poderia ter uma visão mais clara do que está acontecendo lá. Mas, falando como Juíza que trabalhou muitos anos na área criminal, eu diria que essa opção vai solucionar muito pouco, ou nada. O que nós vamos conseguir com isso é provar a nossa falência enquanto Estado, porque não conseguimos barrar uma criança, que está em desenvolvimento, de se desvirtuar de uma linha de valores sociais aceitos. Então, vamos jogar para o Direito Penal o que nós, enquanto sociedade, não conseguimos fazer. E, se o Direito Penal já não faz, porque não é a sua função, com os maiores, não fará com os menores.

    Então, eu acredito que essa não seja a solução e acho que poderia haver algo intermediário, uma maior entrada do Estado na vida destas crianças, mas não pela área penal.

    EXPEDIENTE

    Entrevista concedida a Lizete Flores

    Degravada e revisada pelo Departamento de Taquigrafia e Estenotipia do TJRS

    Assessora-Coordenadora de Imprensa: Adriana Arend

    imprensa@tj.rs.gov.br

    Publicação em 11/12/2008 17:17

    • Publicações7827
    • Seguidores2072
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações297
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/desembargadora-katia-elenise-oliveira-da-silva-o-direito-penal-nao-promove-condutas-e-muito-menos-serve-como-licao-pode-apenas-contribuir-depois-que-o-fato-ja-aconteceu/372131

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)