2 de Julho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Processo
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
apelação civil. ação de interdição. limites da incapacidade. NECESSIDADE DE PERÍCIA MÉDICA.
Perícia médica.
Com o advento da Lei 13.146/2015, a teoria das incapacidades do Código Civil foi alterada. Agora, a deficiência mental, emocional ou sensorial não acarreta, inexoravelmente, a incapacidade ampla e completa para prática de atos da vida civil.
Com efeito, a partir de uma abordagem iluminada pelo princípio da dignidade humana e das complexidades que cada pessoa, individualmente, traz consigo, o Estado deve identificar, caso a caso, o nível limitação da capacidade do réu em processo de interdição.
Nesse contexto, a perícia médica é imprescindível. Consequentemente, de rigor a desconstituição da sentença.
DERAM PROVIMENTO.
Apelação Cível | Oitava Câmara Cível |
Nº 70079208443 (Nº CNJ: 0286056-18.2018.8.21.7000) | Comarca de Charqueadas |
V.M.R.S. .. | APELANTE |
J.E.S.L. .. | APELADO |
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores Des. Ricardo Moreira Lins Pastl e Des. José Antônio Daltoé Cezar.
Porto Alegre, 13 de dezembro de 2018.
DES. RUI PORTANOVA,
Presidente e Relator.
RELATÓRIO
Des. Rui Portanova (PRESIDENTE E RELATOR)
Inicialmente, acolho o relatório de fl. 54:
“Trata-se de APELAÇÃO CÍVEL interposta por VERA MARIA contra a sentença (fls. 43/44) que julgou procedente O pedido deduzido na ação de interdição movida por JANE ELIZABETE DA S. L.
Em suas razões (fls. 46/50), impugna por negativa geral a pretensão da parte autora, sustentando não ter havido demonstração cabal dos fatos constitutivos do direito alegado. No mais, sublinha a imprescindibilidade da produção de prova pericial no procedimento de interdição, invocando os dispositivos legais aplicáveis e colacionando ementas de julgados. Nessa trilha, assevera que a avaliação da deficiência deve ser biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar, o que não ocorreu na espécie. Argumenta que, acaso mantido o decreto de interdição, a sentença deve especificar quais os limites da curatela, nos termos do artigo 2º § 1º da Lei nº 13.146/15. Pede provimento.
Decorrido o prazo legal sem a apresentação de contrarrazões (fl. 52, verso), subiram e vieram os autos a esta Procuradoria de Justiça para parecer.”
É o relatório.
VOTOS
Des. Rui Portanova (PRESIDENTE E RELATOR)
Trata-se de apelação interposta pela Defensoria Pública, no exercício da curadoria especial de VERA, ré em ação de interdição.
A apelante se volta contra o aproveitamento da perícia realizada no âmbito da Justiça Federal e com o decreto de “interdição total” da ré, baseado naquela perícia “emprestada”.
Com razão.
Isso porque o art. 85, § 1º da Lei nº 13.146/2015 estabelece expressamente que “ A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.”.
Por outro lado, não há que se perder de vista que a avaliação da deficiência, nos termos do § 1º, do art. 2º da referida lei, “será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de participação”.
Nesse passo, mesmo que a ré seja deficiente mental congênita, por provável insuficiência de oxigênio ao nascer, (fl. 43v) é de rigor a realização de perícia médica, nos moldes previstos na legislação especial, na perspectiva de identificar eventuais atos a serem ressalvados do decreto de interdição.
Razão pela qual, estou acolhendo como razões de decidir o parecer do ilustre Procurador de Justiça Ricardo Vaz Seelig (fl. 54/56), verbis:
“(...)
O feito padece de nulidade por estar em desacordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Nos termos da novel legislação n.º 13.146/15, cuja entrada em vigor ocorreu em dezembro de 2015, “Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Os artigos 3º e 4º do Código Civil passaram a vigorar com a seguinte redação:
Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
II - (Revogado); (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
IV - os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
O Código Civil, ainda por força do Estatuto, sofreu modificações no título IV, passando-se a denominar “Da Tutela, da Curatela e da Tomada de Decisão Apoiada”.
A partir de então, considera-se a pessoa com deficiência detentora dos direitos civis, conforme preconizam os arts. 6º e 84º, in verbis:
Art. 6o. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I - casar-se e constituir união estável;
II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. - grifos apostos.
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial .
§ 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2o A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. - grifos apostos.
A propósito, a lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald :
“O rol, a lista das pessoas consideradas incapazes pelo Código Civil foi significativamente alterada pelo advento da Lei nº 13.146/15 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, publicada em 7.7.15. O aludido Diploma Legal materializou, no âmbito normativo interno brasileiro, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, apelidada de Convenção de Nova Iorque, ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186/08. O seu nobre desiderato, a toda evidência, é de cunho humanista e inclusivo: promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência (física ou mental) e promover o respeito pela sua dignidade inerente.”
Dessa forma, há de se ter em conta, ainda, que a avaliação da deficiência, nos termos do § 1º, do art. 2º da referida lei, “será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo; II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais; III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de participação”.
Na hipótese dos autos, a avaliação da paciente por expert foi realizada em descumprimento à referida legislação, uma vez que “aproveitado” o laudo médico realizado perante a Justiça Federal (fls. 08/11), que, embora conclua que Vera Maria R. da S. não responde pelos atos da vida civil, deixou de especificar os atos para os quais haverá a necessidade da medida, nos termos da Lei.
Assim, não se olvidando do caráter cerceador das ações de interdição — geradoras de drásticas consequências àqueles privados do direito de gerir suas vidas —, imprescindível a realização da prova pericial nos moldes impostos pelo legislador .
Por tais razões, a sentença merece desconstituição, à similitude do que vem decidindo esta Corte em casos análogos:
APELAÇÃO CÍVEL. CURATELA. IMPOSSIBILIDADE DE SUPRESSÃO DE ATOS PROCESSUAIS QUE REPRESENTEM UM MEIO DE DEFESA DA PESSOA SUPOSTAMENTE SUJEITA À CURATELA. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA MÉDICA. IMPRESCINDIBILIDADE. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL AO DEMANDADO. CASSAÇÃO DA SENTENÇA. 1. É pertinente e adequada a nomeação de curador especial ao demandado, em ação relativa à curatela, que não possua advogado constituído nos autos, em conformidade com o disposto no art. 752, § 3º, do CPC/15, mormente porque o art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal assegura a todos os litigantes a ampla defesa. 2. De acordo com o art. 753, caput, do CPC/15, a realização de prova pericial é imprescindível no processo relativo à curatela, devendo o respectivo laudo indicar especificadamente, se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade de curatela (§ 2º do art. 753). A ausência de exame pericial, tal como é exigido pelo dispositivo legal supracitado, não é sanável pela apresentação de simples atestado médico. Precedentes deste Tribunal. 3. Descumprido o procedimento previsto na legislação processual civil, é de ser cassada a sentença que, em sede de "ação de interdição", julga procedente o pedido, decretando "a interdição, em todos os atos da vida civil" do requerido, sem que tenham sido praticados atos processuais que representam um meio de defesa da pessoa supostamente sujeita à curatela. Ademais, tendo em vista a entrada em vigor da Lei n.º 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a condução do feito deverá se dar sob a nova ótica dada ao instituto da curatela pelo referido estatuto, que inclusive restringiu as hipóteses de sujeição à curatela e definiu seus limites. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. ( Apelação Cível Nº 70073408205, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 25/05/2017) – grifos apostos.
Destarte, de ser desconstituída a sentença, para que seja realizada perícia biopsicossocial, delimitando-se os limites da interdição, com o devido apontamento, no caso concreto, do período inicial da incapacidade civil para os atos negociais.
DIANTE DO EXPOSTO , opina-se pelo conhecimento e provimento do recurso, desconstituindo-se a sentença, pois em desacordo com o Estatuto da Pessoa com Deficiência e seus consectários legais.”
ANTE O EXPOSTO, dou provimento à apelação para desconstituir a sentença e determinar a realização de perícia médica, para identificação dos limites da interdição, nos termos da fundamentação.
Des. Ricardo Moreira Lins Pastl - De acordo com o (a) Relator (a).
Des. José Antônio Daltoé Cezar - De acordo com o (a) Relator (a).
DES. RUI PORTANOVA - Presidente - Apelação Cível nº 70079208443, Comarca de Charqueadas: "DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador (a) de 1º Grau: ANNA ALICE DA ROSA SCHUH
� DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil, vol. I. 14ª ed. Jus Podivm. p. 325