Admissível, recebo o mandado de segurança.
O mandado de segurança é remédio constitucional (art. 5º, inciso LIXI, da CF) para a proteção de direito líquido e certo, de ameaça de lesão ou de lesão por ato de autoridade.
Aliás, a redação do art. 1º, da Lei nº 12.016/2009 estabelece que “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade […]”.
Segundo Hely Lopes Meirelles1, direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração – ou seja, pressupõe fatos incontroversos, demonstrados de plano por prova pré-constituída, por não admitir dilação probatória, salvo quando não tenha acesso a esta, quando deverão ser solicitados pelo juízo, nos termos do artigo 6º, § 1º, da Lei nº 12.016/09.
A questão trazida a lume diz respeito a pleito do impetrante em ver suspenso os efeitos da pena de suspensão por 30 dias aplicada em processo administrativo, até o esgotamento da fase administrativa, visto que aplicada prematuramente, em inobservância aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Tece considerações, também, sobre a penalidade de repreensão ser mais adequada ao caso em questão.
No caso, o impetrante, servidor público estadual, ocupante do cargo de Técnico Tributário da Receita Estadual, teve aplicada contra si, em novembro de 2020, no Processo Administrativo nº 574-1400/19-8, pena de suspensão por 30 dias, por meio da Portaria nº 46/2020 (evento 1 - INIC1, pág. 23):
O SECRETÁRIO ESTADA DA FAZENDA, no uso de suas atribuições, REVOGA a Portaria nº 028/2020, de 26 de agosto de 2020, publicada no Diário Oficial Eletrônico do Estado de 31/08/2020, e APLICA a pena de SUSPENSÃO por 30 dias ao servidor RENATO KUSIAK, Técnico Tributário da Receita Estadual, Identidade Funcional/Vínculo nº 1823477/01, nos termos do art. 187, II, c/c art. 189, I e III, por não haver cumprido os deveres elencados no art. 177, III, V, VI, VII e X, e incidido nas proibições estabelecidas no art. 178, IV e XXIV, todos da Lei Complementar nº 10.098, de 3 de fevereiro de 1994.
Primeiramente, quanto à alegação de que a penalidade aplicada é demasiada severa, sendo mais adequada a pena de repreensão para a situação em questão, há que se ressaltar que o controle judicial do ato administrativo que aplica pena disciplinar ao servidor é limitado a sua legalidade e legitimidade, sendo vedada a apreciação do mérito pelo Poder Judiciário, sob pena de afronta ao princípio constitucional da separação de poderes. Destarte, só é possível a revisão das decisões administrativas quando há flagrante e comprovada ilegalidade do ato.
Nesse sentido, ensina Hely Lopes Meirelles2:
“O que não se permite ao Judiciário é pronunciar-se sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, porque, se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração, e não de jurisdição judicial.”.
É sabido que a suspensão é pena disciplinar que pode ser decretada pela Administração, através do devido processo administrativo em que seja garantida, ao servidor, a observância do contraditório e da ampla defesa.
Discorre o servidor que sempre desempenhou suas atividades com lisura, respeito às normas, zelo e probidade, inexistindo qualquer espécie de penalidade anterior em seu histórico funcional.
Como bem observado no parecer apresentado pelo Procurador de Justiça Luiz Felipe Brack, "ainda que possível a aplicação da pena de repreensão, ao invés da suspensão, não constitui direito do servidor, mas uma faculdade dada à Administração, levando em conta as peculiaridades de cada caso".
A pretensão, portanto, é de nítida rediscussão do mérito administrativo, com reanálise da prova produzida e conclusão em sentido diverso daquele adotado pela comissão processante, o que, como antes mencionado, é inviável na seara judicial, sob pena de violação da separação dos poderes.
Neste sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. MUNICÍPIO DE PAROBÉ. PENA DE DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. LEI MUNICIPAL Nº 2.393/06. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE ILEGALIDADE NO PROCESSO ADMINISTRATIVO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. DESCABIMENTO. 1. O controle judicial do ato administrativo de demissão do servidor se restringe a sua legalidade e legitimidade, sendo vedada a apreciação do mérito pelo Poder Judiciário, sob pena de afronta ao princípio constitucional da separação de poderes. 2. Inexistindo qualquer demonstração de ilegalidade no agir da Administração Pública, a improcedência da demanda é medida que se impõe. 3. Na espécie, ausente ilegalidade no ato administrativo ora questionado, mormente porque devidamente identificadas faltas ao trabalho superiores a 30 (trinta) dias consecutivos, a configurar o abandono de emprego, nos termos do art. 169 da Lei Municipal nº 2.393/2006, tornando o servidor incurso na pena de demissão (art. 166, II), após regular processo administrativo disciplinar (art. 180, III), no qual conferido ao servidor o direito à ampla defesa e ao contraditório. 4. Com relação às demais razões em que se alicerça o apelo, por afetas ao mérito das conclusões do PAD, refogem ao exame do Poder Judiciário. 5. Danos materiais (remuneração integral posterior à data da demissão) e danos morais afastados. Diante da higidez do ato administrativo impugnada, não há se falar em ato ilícito praticado pela Administração com relação à pena de demissão aplicada pelo PAD. 6. A ausência de qualquer dos pressupostos da responsabilidade civil afasta a indenização pretendida. 7. Sentença de improcedência na origem. APELAÇÃO DESPROVIDA.(Apelação Cível, Nº 70074704586, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Vinícius Amaro da Silveira, Julgado em: 24-07-2019) (Grifei)
Além disso, deve ser afastada a alegação de cerceamento de defesa e violação ao princípio do contraditório, pelo não envio do parecer da comissão de sindicância.
Discorre o impetrante que foi notificado, no dia 27/10/2020, para cumprir algumas determinações que tomavam por base o referido parecer, mas que sequer teve acesso ao teor do documento, o que impediu o exercício do contraditório e da ampla defesa.
No entanto, pela documentação acostada à inicial, percebe-se que o impetrante formulou requerimento de acesso aos documentos da seguinte forma (evento 1 - INIC1 - pág. 31):
1 - Que seja fornecida cópia "integral" do Parecer da Comissão de Sindicância instituída pela Portaria 44/2019-RE, publicada no Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Sul em 12/04/2019;
2 - Que seja fornecida cópia das páginas 375, 376, 377 e subsequentes, até a última, do Processo Administrativo nº 574-1400/19-8, da Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul;
3 - Cópia da íntegra do GPRE que originou a notificação.
Como o próprio impetrante aponta, o requerimento foi respondido por e-mail, com a indicação de acesso ao inteiro teor do processo administrativo por meio de senha (evento 1 - INIC1 - pág. 32), o que permite concluir, também, pela ciência do teor do parecer almejado, já que o servidor teve acesso a toda a instrução do expediente administrativo, bem como das conclusões e decisões emitidas até aquela data.
No que tange à alegação de falta de fundamentação na aplicação da penalidade de suspensão, entendo que também não deve prosperar.
A decisão final do processo administrativo disciplinar, que concluiu pela aplicação da pena de suspensão do servidor, foi prolatada nos termos trazidos no corpo das informação prestadas pela autoridade coatora, no qual se percebe, de maneira clara, a solução jurídica adotada para os fatos investigados.
Veja-se que o impetrante não traz aos autos elementos que permitam infirmar a conclusão obtida pela administração pública, tampouco pormenoriza quais argumentos apresentados na defesa administrativa que não teriam sido abarcados na conclusão do PAD, limitando-se a tecer comentários genéricos no sentido de que a decisão final foi prolatada "sem que houvesse a competente fundamentação que demonstrasse o rol probatório que conduziu a autoridade julgadora a produzir referido juízo de valor".
Finalmente, também não prospera o alegado direito líquido e certo pela alegação de aplicação prematura da pena, sem o exaurimento da esfera administrativa.
No caso em liça, o impetrante apresentou tempestivamente pedido de reconsideração da decisão final proferida no PAD, nos termos do art. 169 da Lei Complementar nº 10.098/94:
Art. 169 - Cabe pedido de reconsideração, que não poderá ser renovado, à autoridade que houver prolatado o despacho, proferido a primeira decisão ou praticado o ato.
§ 1º - O pedido de reconsideração deverá conter novos argumentos ou provas suscetíveis de reformar o despacho, a decisão ou o ato.
§ 2º - O pedido de reconsideração deverá ser decidido dentro de 30 (trinta) dias.
Como instância final, restaria, ainda, a possibilidade de interposição de recurso administrativo da decisão que aplicou a penalidade, nos termos do art. 170 da mesma legislação:
Art. 170 - Caberá recurso, como última instância administrativa, do indeferimento do pedido de reconsideração.
§ 1º - O recurso será dirigido à autoridade que tiver proferido a decisão ou expedido o ato.
§ 2º - O recurso será encaminhado por intermédio da autoridade a que estiver imediatamente subordinado o requerente.
§ 3º - Terá caráter de recurso, o pedido de reconsideração, quando o prolator do despacho, decisão ou ato, houver sido o Governador.
§ 4º - A decisão sobre qualquer recurso será dada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias.
Pela inexistência, na legislação aplicável, de previsão de recebimento dos recursos administrativos no efeito suspensivo, a implementação da pena disciplinar de suspensão, com os efeitos dela decorrentes, a contar de 16/11/2020 a 15/12/2020 (evento 1 - INIC1 - pág 19), se deu antes mesmo da análise do pedido de reconsideração, o que configura, na visão do impetrante, violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como do devido processo legal.
Todavia, é pacífico no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que é possível o imediato cumprimento da penalidade aplicada na conclusão de processo administrativo disciplinar, uma vez que os recursos administrativos e os pedidos de reconsideração, em regra, não possuem efeito suspensivo automático.
A exemplo:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. TÉCNICO DE ASSUNTOS EDUCACIONAIS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA. ARTS. 127, IV, 132, IV E 134, DA LEI 8.112/1990. USO DE DOCUMENTO FALSO. DIPLOMA DE GRADUAÇÃO EM PEDAGOGIA. CUMPRIMENTO IMEDIATO DA PENALIDADE IMPOSTA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. ALEGADA AUSÊNCIA DE DOCUMENTOS. NÃO COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA DISCIPLINAR. INOCORRÊNCIA. SEGURANÇA DENEGADA.
1. Pretende a impetrante, ex-Técnica de Assuntos Educacionais do Quadro de Pessoal do Ministério da Saúde, a concessão da segurança para anular a Portaria Ministerial que cassou sua aposentadoria, frente à ilegal interrupção do pagamento de seus proventos antes do trânsito em julgado da decisão administrativa, a ocorrência de violação dos princípios do contraditório e da ampla diante da ausência de documentos essenciais nos autos do PAD e a prescrição da pretensão punitiva disciplinar.
2. Não há ilegalidade no cumprimento imediato da penalidade imposta a servidor público logo após o julgamento do PAD e antes do decurso do prazo para o recurso administrativo, tendo em vista o atributo de auto-executoriedade que rege os atos administrativos e que o recurso administrativo, em regra, carece de efeito suspensivo (ex vi do art. 109 da Lei 8.112/1990). Precedentes: MS 14.450/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Terceira Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 19/12/2014; MS 14.425/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Terceira Seção, julgado em 24/09/2014, DJe 01/10/2014; MS 10.759/DF, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, julgado em 10/05/2006, DJ 22/05/2006.
3. Não merece acolhida a alegação da impetrante no sentido de que a ausência de documentos indispensáveis nos autos do PAD teria prejudicado o exercício do seu direito de defesa, isto porque tal questão sequer foi invocada pela impetrante na defesa apresentada no PAD, evidenciando-se que os documentos acostados aos autos do PAD eram mais que suficientes para a sua defesa.
[...]
7. Segurança denegada.
( MS 19.488/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/03/2015, DJe 31/03/2015) (Grifei e suprimi).
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA AMPLA DEFESA. INEXISTÊNCIA. APRESENTAÇÃO DE MEMORIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. INTIMAÇÃO DO ATO DE DEMISSÃO PELA PUBLICAÇÃO NA IMPRENSA OFICIAL. VISTAS DOS AUTOS APÓS DECISÃO FINAL. NÃO APRESENTAÇÃO DE RECURSO CABÍVEL. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO IMEDIATA DA PENALIDADE.
1. Nos termos do art. 142 da Lei n. 8.112/1990, a ação disciplinar - quanto às infrações puníveis com demissão - prescreve em cinco anos, sendo certo que tal prazo começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido, havendo a sua interrupção pela abertura de sindicância ou instauração de processo disciplinar. Hipótese em que não ocorreu a prescrição.
[...]
8. Os recursos administrativos, via de regra, são recebidos apenas no efeito devolutivo, podendo haver a concessão de efeito suspensivo a juízo da autoridade competente. Não havendo sequer a apresentação de pedido de reconsideração ou interposição de recurso, é perfeitamente possível o imediato cumprimento da penalidade aplicada na conclusão do processo administrativo disciplinar. Precedente.
9. Ordem denegada.
( MS 14.450/DF, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/11/2014, DJe 19/12/2014) (Grifei e suprimi).
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO CONFIGURADO. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DO PRAZO PARA CONCLUSÃO DOS TRABALHOS. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. PREJUÍZOS NÃO DEMONSTRADOS. RECURSO ADMINISTRATIVO. EFEITO DEVOLUTIVO. EXECUÇÃO IMEDIATA. SEGURANÇA DENEGADA.
1. A documentação acostada aos autos do processo administrativo evidencia a adoção dos procedimentos necessários à garantia da ampla defesa e ao exercício do contraditório.
2. Este Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de que a extensão do prazo para conclusão do processo administrativo não enseja a nulidade, quando não demonstrado prejuízo à defesa do processado.
3. O recurso administrativo é recebido, via de regra, apenas no efeito devolutivo, o que permite a execução imediata da decisão tomada no processo administrativo.
[...]
6. Segurança denegada.
( MS: 14.425/DF, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/09/2014, DJe 01/10/2014) (Grifei e suprimi).
Como restou consignado pelo Relator no julgamento do Mandado de Segurança 19.488/DF, cuja ementa acima colacionei:
"[...] os atos administrativos gozam de auto-executoriedade, possibilitando que a Administração Pública realize, através de meios próprios, a execução dos seus efeitos materiais, independentemente de autorização judicial ou do trânsito em julgado da decisão administrativa
Outrossim, os efeitos materiais da penalidade imposta ao servidor público, tal como a supressão do salário, independente do julgamento de recurso interposto na esfera administrativa que, em regra, é recebido apenas no efeito devolutivo [...]".
Logo, inexiste ilegalidade no cumprimento imediato da penalidade imposta ao impetrante logo após o julgamento do PAD e antes do decurso do prazo para o recurso administrativo cabível.
Diante de tais considerações, a denegação da segurança é medida impositiva.
Custas pelo impetrante.
Ausente condenação em honorários, nos termos do art. 25 da Lei nº 12.016/09.
Ante o exposto, voto por denegar a segurança, revogando-se a liminar deferida.